Brasil atrai testes de vacinas

A notícia de que duas das dez vacinas contra o novo coronavírus Sars-CoV2 nas fases mais avançadas de pesquisa serão testadas também no Brasil despertou esperanças de que a pandemia possa estar sob controle nos próximos meses. Cinco dessas dez vacinas em testes clínicos são chinesas. Se alguma das dez obtiver sucesso em prazo tão curto, será a maior conquista científica da humanidade desde o sequenciamento do genoma humano. Jamais uma vacina terá sido desenvolvida tão rápido.

A primeira das duas vacinas que serão testadas no Brasil, desenvolvida pela Universidade de Oxford em parceria com a AstraZeneca, é a que está em estágio mais avançado, já na terceira fase dos testes clínicos. Isso significa que ela já passou por testes em animais, testes de segurança e dosagem em pequenos grupos, testes de eficácia em grupos maiores – e despertou resposta imune satisfatória. Em princípio, só faltariam a terceira fase, que avalia a viabilidade da vacina em larga escala (em milhares de pessoas), e a aprovação formal das autoridades.

A vacina de Oxford usa uma técnica semelhante à segunda vacina em fase mais avançada, desenvolvida pela empresa chinesa CanSino. Para suscitar a reação imune, ambas embutem genes responsáveis pela produção das protrusões características do Sars-CoV2 noutro tipo de vírus, conhecido como adenovírus. A vantagem é que se trata de uma técnica estabelecida, que já vinha sendo pesquisada para a obtenção de uma vacina conta a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers).

A outra vacina que será testada no Brasil, desenvolvida pela também chinesa Sinovac, emprega uma técnica clássica, o uso de uma versão inativa do próprio coronavírus para provocar a produção de anticorpos no organismo. Mesmo antes de comprovada a eficácia, a Sinovac já está construindo uma fábrica capaz de produzir 100 milhões de doses anuais e, aqui no Brasl, firmou acordo com o Instituto Butantan.

A construção em paralelo de fábricas capazes de produzir vacinas em larga escala – um investimento estimado em bilhões de dólares – é uma das novidades da corrida pela vacina. Outra inovação é a realização em paralelo de testes das fases um e dois (caso da Sinovac) ou dois e três (caso de Oxford). Cientistas ligados à Coalizão para Inovações de Preparo Epidêmico (Cepi), o maior consórcio mundial de apoio à produção de vacinas, qualificam de “velocidade pandêmica” a “nova era no desenvolvimento de vacinas”.

Paradoxalmente, o Brasil se tornou um território atraente para testes em virtude do avanço veloz e devastador da pandemia por aqui. “Quanto mais alta a taxa de ataque – o percentual da população que contrairá a doença num período determinado –, mais rápido um teste robusto pode obter resultados”, afirma reportagem na revista The Lancet.

O objetivo dos pesquisadores de Oxford é que sua vacina esteja disponível no início de 2021. Em média, desenvolver uma vacina leva dez anos. O recorde atual é da vacina contra o ebola: cinco anos. Um dos principais desafios da AstraZeneca na meta de distribuir 2 bilhões de doses está não da fabricação da vacina em si, mas na produção dos recipientes de vidro. As fábricas não têm capacidade suficiente. Provável que seja necessário acomodar até dez doses num só frasco.

O desenvolvimento das vacinas é assombrado por questões éticas. Um grupo de cientistas defende a aceleração por meio de testes conhecidos como “desafios”, em que o paciente é vacinado, depois exposto ao vírus. Foi assim que Edward Jenner demonstrou a eficácia da primeira vacina, ainda no século XVIII: expôs à varíola um menino inoculado com material de vacas infectadas por um mal semelhante, para provar que estava imune (o nome vacina deriva de “vaca”). Seria absurdo arriscar vidas expondo pacientes a vírus letais como ebola ou HIV, mas o novo coronavírus, cuja letalidade é baixíssima nas faixas etárias mais jovens, deu outros contornos à questão.

Enquanto não há vacina específica para a Covid-19, pesquisadores avaliam se os programas de vacinação já aplicados também exercem algum efeito protetor. Um estudo preliminar de pesquisadores americanos vinculou o impacto aparentemente menor da pandemia em vários países à aplicação da vacina contra o Bacilo Calmette-Guérin (BCG), que confere proteção contra a tuberculose e cujo mecanismo de atuação desperta no sistema imunológico uma resposta que guarda paralelos com o mecanismo de atuação do novo coronavírus.

A hipótese foi, contudo, desmentida por um estudo israelense publicado em maio na revista da Associação Médica Americana (Jama). Os cientistas pesquisadores lançaram mão de um fato oportuno: em Israel, a aplicação obrigatória da BCG foi interrompida em 1982, tornando possível comparar a incidência do vírus em populações similares (os nascidos 3 anos antes e 3 anos depois da interrupção).

Outra hipótese, levantada por um artigo publicado na edição de hoje da revista Science, é que a vacina oral conta a poliomielite, a Sabin – celebrizada no Brasil pelo personagem Zé Gotinha – também confira algum tipo de proteção contra o Sars-CoV2. Um argumento em favor dos efeitos benéficos adicionais dessa vacina é a redução da mortalidade infantil entre crianças vacinadas na Guiné-Bissau que jamais tiveram contato com o vírus da pólio.

Um segundo argumento são as semelhanças entre os dois vírus, tanto na morfologia quanto na atuação no organismo. “Relatos recentes sugerem que a Covid-19 pode resultar da supressão de respostas imunológicas inatas”, escrevem os cientistas. “Portanto, o estímulo por vacinas de vírus vivo atenuado (como a Sabin) podem aumentar a resistência à infecção pelo vírus causador, o Sars-CoV2. Estudos clínicos dessa hipótese poderiam começar imediatamente.”

Por mais que as vacinas existentes suscitem questões intrigantes, os estudos clínicos deveriam se concentrar – como já se concentram – nas vacinas específicas para a Covid-19. Em meio aos absurdos cotidianos do presidente Jair Bolsonaro, ao desrespeito pela memória dos mortos manifestado por seus acólitos e à fé irracional depositada em drogas milagrosas, é uma notícia excelente, e um alento, que duas vacinas estejam em testes avançados no Brasil. Fonte: G1